segunda-feira, 6 de junho de 2011

Capítulo 4 - Rafael não pode atender no momento...



A sexta-feira lhe trouxe um gosto amargo. No domingo, faria uma semana que Analice estava desaparecida e nada havia mudado. No mundo são, a hipótese de fuga havia sido levantada. A família não tinha inimigos (ou ao menos, não no nível de sequestrar a filha) e nenhum pedido de resgate havia sido feito. No diário da menina, muitas fantasias sobre ir embora para um lugar distante onde pudesse conhecer coisas novas apontavam para seu desejo de partir. A polícia afrouxava as investigações, sem saber mais onde procurar. Mas este era o atual cenário, como disse, no mundo sensato. No seu mundo, no entanto, onde a sanidade era frequentemente questionada, as pistas pareciam cada vez mais malucas. Segundo elas, Analice estava no mundo das fadas e precisaria de um anjo para chegar lá. E não era um anjo qualquer, tinha que ser um anjo importante, desses que devem receber milhares de e-mails por dia. Estava sentada em sua carteira, sem conseguir prestar atenção na aula, observando a carteira vazia de Analice. Olhou em volta. Ninguém parecia ligar. Os colegas conversavam normalmente, o professor prosseguia sua aula, o relógio continuava a marcar a hora. Nada mudara. Nada parara. Aparentemente, somente ela estava realmente preocupada com Analice.

Bianca se lembrou como foi difícil romper a barreira que a amiga construiu ao seu redor. Analice vinha de uma outra escola, de uma outra cidade e era evidentemente uma novidade. Os outros adolescentes a olhavam com curiosidade, mas Analice permanecia séria e distante. Analice usava muito preto. Insistia em usar lápis e batom negros e manter a imagem de gótica chic. Falava baixo e nunca sorria. A maldade peculiar do ambiente de escola logo lhe deram um apelido óbvio: Vandinha. Analice não pareceu se importar, mas Bianca sabia que era só uma atuação. Ela mesma, que recebera muitos apelidos no decorrer da vida, sabia que eram apenas rótulos que os colegas usavam para tentar compreender outras pessoas. Bianca por exemplo, era a Bianca Maluca. Quando estavam mais dispostos, usavam seu nome completo: Bianca Maluca Pirada da Silva. Bianca não se importava. Seu pai lhe explicara que as melhores e mais brilhantes pessoas que já conhecera eram malucas. Bianca aprendeu muito cedo a ser livre e não depender da aprovação de ninguém para seguir o caminho que escolhesse. Por isso, escolheu se aproximar da garota mais esquisita da escola.

Achou que ia encontrar uma dessas wiccanas e, para puxar assunto, comprou uma revistinha na banca chamada Wicca e leu. Gostou e, num intervalo de aula, ofereceu a revista para Vandinha, tendo o cuidado de chamá-la de Analice. Espantada, a menina aceitou a revista, pegou suas coisas e, sem agradecer, levantou e foi para uma carteira vazia lá atrás. O professor entrou e a aula começou. Bianca temeu que tivesse cometido uma gafe, mas não havia nada que pudesse fazer naquele momento.

Ao fim da aula, enquanto arrumava suas coisas, Bianca foi surpreendida por uma Analice de pé ao seu lado, devolvendo-lhe a revista.

– Gostei muito! Obrigada – disse a menina.

– De nada...

Analice ficou parada diante dela e Bianca não sabia bem o que dizer, pega de surpresa pela atitude amistosa.

– Você quer lanchar comigo? – perguntou Bianca.

Analice ficou parada algum tempo, como se pensasse longamente sobre o assunto.

– Talvez outro dia.

E foi embora. Bianca poderia lamentar a derrota, mas ela não era esse tipo de pessoa. Bianca era o tipo que comemorava vitórias, mesmo quando elas eram pequenininhas. Tinha dado um passo na direção certa. O objetivo só estava mais longe do que pensara. Teria que dar mais alguns passos, só isso. Assim, nos dias seguintes, levou uma revistinha Wicca diferente para ela. Descobriu que tinha mais 100 números diferentes, então podia fazer isso por, no mínimo, 100 dias. Felizmente, não precisara de tanto. No terceiro dia, Analice lhe sorriu e aceitou seu convite para lanchar.

Bianca sorriu ao lembrar de sua cara quando descobriu que Analice não era wiccana, nem mesmo sabia o que era Wicca, mas que tinha gostado tanto das revistinhas que estava pensando seriamente no assunto. Não demorou muito e se tornaram boas amigas. Não, um pouco mais do que isso: melhores amigas.


Um som chamou a atenção da turma, tirando também Bianca de seu passeio pelo passado. O professor foi até a janela e os alunos acabaram por fazer o mesmo assim que a música começou. Bianca foi até lá e viu um grupo de mexicanos vestidos à caráter com seus enormes chapéus cantando Blue Moon. Uma placa dizia “Feliz Aniversário Bianca! Domingo é o dia!”

Toda a turma começou a rir e cumprimentar Bianca pelo seu dia, enquanto a melodia se espalhava por todo o lugar e a menina continuava olhando abismada. Alguém estava insistindo na mesma pista. Só precisava entender o que significava.


Assim que a aula acabou, saiu correndo para casa. Entrou esbaforida e foi direto para o computador. A casa estava vazia, os pais estavam trabalhando, mas ela não iria parar para almoçar. Não podia perder mais tempo. A placa dizia “Feliz Aniversário, Bianca! Domingo é o dia!”. Sabia que seu aniversário só aconteceria dali a seis meses. Então, o que isso queria dizer? O que aconteceria domingo?

A primeira coisa que fez foi ligar seu computador e imprimir a letra da música e sua devida tradução. Algo lhe tinha escapado, a pista estava ali. Entrou na Internet e baixou algumas versões da música, não sabendo exatamente como isso ia ajudar. Era uma mulher desesperada. Precisava entender o que aquilo queria dizer.

Um carro de som estacionou na frente de sua casa e começou a tocar alguma coisa.

Bianca apurou os ouvidos, acreditando que fossem tocar o raio da música de novo. Mas dessa vez, não houve música, mas uma voz anasalada e unicórdica dizendo:

– Pamoonha! Pamoonha! Olha a pamooonha quentinha! Quem quer pamoonha...

Bianca voltou à sua busca, percebendo que nem todo som era direcionado para ela. Continuou procurando alguma coisa referente à música, mas nada lhe tocava algum sino. Já estava imprimindo quando ouviu lá fora:

– Pamoonha! Fadas gostam de frutas! E gostam de doces! Fadas gostam de pamoonha!

Bianca correu novamente para a janela. O carro da pamonha já virava a esquina, repetindo sua cantilena, mas sem citar fadas novamente.

“Essas pistas estão muito estranhas... Não pode ser o Universo! Tem que ser alguém...”, pensou.

A resposta veio claramente a sua cabeça.

“Analice! Analice está me mandando as pistas de onde ela está! Não sei como, mas ela está!”

Bianca pegou seu caderno e as impressões da música. Pegou também o livro que recebera sobre o mundo das fadas e foi para sua cama, onde sempre pensava melhor. Começou a colocar as pistas em ordem. Espalhou-as sobre a cama e as observou:



1. Cuidado! Fadas!

2. O Tabuleiro abre portais.

3. Analice não está no reino dos mortos.

4. Analice está em outro mundo. Viva, espera-se.

5. Os índios apaches colombianos da pracinha tocaram Blue Moon para ela.

6. Livro das Fadas que chegou misteriosamente pelo correio.

7. O Arcanjo Rafael rege o Reino das Fadas, juntamente com Paralda.

8. Os mexicanos, provavelmente colombianos da mesma família dos índios, tocaram Blue Moon para ela pela segunda vez.

9. Fadas gostam de pamonha.

Essas eram as pistas que tinha. Não sabia o que a última queria dizer. Mas sabia que precisava falar com Rafael. Como fazer isso? Levantou-se e foi até a imensa biblioteca da casa. Tinha uma parte sobre misticismo, magia e bruxaria. Bianca já tinha lido algo sobre isso e acreditava que era possível falar com seres de outros mundos através da magia. Com Rafael, não deveria ser diferente. Pegou os livros que abordavam o tema e procurou o que lhe interessava. Ao fim daquele dia, falaria com um anjo e teria uma resposta sobre Analice.


Gostaria de esperar todos irem dormir para começar o ritual. Temia que alguém irrompesse no aposento e a encontrasse cercada de velas e incensos. Sabia que sua mãe era mais aberta a esse tipo de coisa, mas seu pai não gostava muito dessas coisas que ele mesmo chamava de bruxaria. Bianca achava que por vezes seu pai era tão religioso que poderia ser um padre, embora não conseguisse imaginar um homem como aquele, do tipo que chamava a atenção onde quer que fosse, mantendo-se fora de problemas com paroquianas.

Infelizmente, a hora adequada para chamar Rafael era nove horas da noite na sexta-feira. Teve que contar com a sorte, então. Trancou a porta e aguardou a hora certa, segundo uma tabela de horas relacionadas a gênios ou anjos. Olhava para o relógio ansiosa. Nunca tinha feito isso antes e estava nervosa. O rádio tocava uma música ambiente, trilha sonora de algum filme. Começara de forma inspiradora, mas quando o relógio acusou a hora certa, a música imediatamente se tornou mais sombria. Bianca acendeu as cinco velas coloridas sobre a mesa onde um pentagrama havia sido desenhado. Acendeu os incensos e começou a recitar o encantamento no livro, tentando ignorar a música de terror assombrando seu quarto.

– Tu autem Domine susceptor meus et gloria meã et exaltans caput meum...

Um calafrio percorreu-lhe o corpo. Eram 72 salmos em latim para, somente então, chamar especificamente por Rafael. Não podia se distrair, nem errar. Concentrou-se e continuou. A fumaça do incenso espiralou e dançou, como se acompanhasse a música. Envolveu-a como se fossem pequenos dragões do ar, enquanto sua voz continuava a recitar as palavras em latim.

Quando terminou, chamou por Rafael sete vezes. Na última vez, as chamas das velas cresceram e se tornaram azuladas e a fumaça do incenso se tornou reta como uma corda esticada.

Bianca ficou parada, esperando algo mais acontecer. Não sentia mais calafrios, pelo contrário, estava morrendo de calor, como se houvesse uma lareira acesa no quarto. As chamas das velas voltaram ao seu tamanho e cor normais e a fumaça do incenso voltou a dançar e formar desenhos no ar. Bianca relaxou os ombros, decepcionada. Não havia funcionado.

Foi quando ouviu uma voz.

– Foi você quem chamou?

Bianca não respondeu de pronto. Estava confusa, porque a voz parecia clara, mas vinha de dentro de sua cabeça.

– Foi você? – repetiu a voz.

– F-foi... – gaguejou ela, achando estranho responder aparentemente para si mesma, já que a voz continuava dentro de sua cabeça.

– Bom... O que posso fazer para ajudá-la?

­– Você é Rafael?

– Não, ele está muito ocupado no momento. Mas vim em nome dele, pode dizer o que você quer.

Bianca tinha um monte de perguntas, mas sabia que precisava ir direto ao ponto.

– Minha amiga Analice desapareceu domingo passado. Eu acho que ela está no Reino das Fadas. Pode me ajudar a encontrá-la?

A voz não respondeu de imediato, como se não esperasse aquele tipo de pergunta.

– Alô? – Bianca temia ter caído a linha.

– Estou aqui. Estou apenas verificando seu pedido. Aguarde um momento, por favor.

Bianca achou ter ouvido algo em outra língua, mas foi muito rápido. Tudo ficou em silêncio e ela continuou esperando, achando que aquilo estava parecendo com um serviço de telemarketing. Algum tempo se passou em que Bianca não ouviu absolutamente nada além da música que ecoava no quarto e algum cachorro latindo ao longe.

– Você conhece os perigos do Mundo das Fadas? – perguntou finalmente a voz.

– Conheço... – Bianca não estava muito segura.

– Então sabe que ao ir para lá, pode nunca mais voltar?

Bianca não respondeu. A voz parecia jovial, mas muito séria.

– Sabe que ao tentar recuperar o que perdeu, pode perder tudo o que tem?

– Não procuro tesouros! – respondeu Bianca de repente. – Não quero ir porque estou curiosa, embora esteja mesmo. Não quero ir para ver uma fada de verdade. Quero ir porque minha melhor amiga foi levada para lá e pode estar sozinha ou em apuros agora! Sou a única amiga de verdade dela, ela só tem a mim para ir até lá. Se você fosse arrastado para um outro mundo, e estivesse em perigo, ou sofrendo, não gostaria que alguém que o amasse o bastante fosse até lá resgatá-lo?

Houve um breve silêncio.

– Você aceita os riscos, então?- disse a voz, em tom mais baixo, e Bianca quase notou um traço de decepção.

Bianca respirou fundo.

– Aceito.

Fechou os olhos, esperando que uma ventania adentrasse o quarto e ela fosse sugada para uma outra dimensão. Mas nada aconteceu. Abriu os olhos novamente. A fumaça branca do incenso ainda dançava, as velas ainda aguardavam tranqüilamente.

– Muito bem... – tornou a voz. – Você deverá escolher o momento certo, do dia certo, no lugar certo e fazer o que tem que fazer. Não deverá levar consigo nenhum aparelho eletrônico. Mas deve levar o seguinte:

Bianca ficou atenta esperando o resto.

– Anote! Ou você pode esquecer!

Ela pegou atarantada um bloco e uma caneta e começou a anotar o que a voz lhe dizia.

– Você deve levar frutas, doces e coisas que você coma, além de uma garrafa de água. Não precisa ser em grande quantidade, apenas o bastante para uma refeição. Não leve carne de nenhum tipo.

“Puxa, que pena, não poderei levar 20 kg de costela pra fazer um churrasco...”, pensou Bianca, achando o conselho um tanto idiota.

– Você pode não levar costela, mas bem que ia gostar de levar um frango assado com farofa, sua farofeira! – disse a voz, surpreendendo-a.

– Você pode ouvir o que eu penso???

– Posso ouvir e posso ver. Então é melhor tomar cuidado com seus pensamentos.

– E lá se foi minha privacidade... – murmurou a contragosto. – Muito bem, não levar carne, e o que mais?

– Você não deve comer nenhum tipo de carne a partir de agora. Nem beber bebidas alcoólicas. Você deve levar, e isso é muito importante, uma coisa que a lembre de quem você é e de onde você veio. Você deve levar algumas jóias, não precisam ser verdadeiras, mas precisam ser brilhantes e bonitas. Não vá de preto. Nos encontraremos lá!

– Peraí! Lá onde?

– Você não estava prestando atenção? No lugar certo, no momento certo do dia certo!

Bianca sentiu a energia à qual já estava se acostumando começar a se afastar.

– Espere! Qual o seu nome?

– Zacariel.

E foi a última coisa que ouviu da voz, que desapareceu logo depois. Bianca foi até o interruptor e acendeu a luz. Foi apagar as velas e se surpreendeu em como elas estavam menores. Olhou o relógio. Começara o ritual às nove horas da noite, exatamente. Eram agora quase uma hora da manhã. Como não percebera que já haviam se passado quase quatro horas? Apagou as velas e recolheu tudo. Deitou-se, exausta. Queria pensar mais no assunto, mas assim que encostou a cabeça no travesseiro, o sono a levou.


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