segunda-feira, 6 de junho de 2011

Capítulo 5 - O lugar certo, na hora certa, do dia certo





O problema das coisas invisíveis é que não podemos vê-las. Isso pode parecer o óbvio ululante pra você nesse minuto, mas para Bianca, ao acordar com uma poderosa ressaca, com seu pai falando, sua mãe rindo e Cacau latindo, pareceu uma grande descoberta filosófica. Deveria estar dormindo até mais tarde naquele sábado, mas não teve nem tempo de colocar as informações da noite anterior em ordem.

– Bom dia, alegria! Hoje é o dia!

Piscou várias vezes enquanto olhava para seu pai sentado na beirada de sua cama. Já ouvira isso antes... Mas porque seu pai estava ali, afinal?

– O quê? – foi só o que conseguiu formular às sete horas da manhã.

– Vamos, maluquinha, é hora de se divertir um pouco!

Ele jogou uma roupa em cima dela e sua mãe apareceu usando um short e camiseta. Ninguém respondeu suas perguntas, embora não tivesse certeza se tinha conseguido realmente formulá-las. Colocou a roupa, fresca e confortável, lavou o rosto e escovou os dentes. Foi apressada para o carro, onde Cacau também entrou. Cacau entrava em qualquer carro que abrisse a porta perto dela. Muitas vezes, foram chamados pelo vizinho para retirar uma vira-lata de dentro do carro dele.

– Pra onde estamos indo? – perguntou novamente.

– Sua mãe e eu achamos que há muito tempo não saímos juntos, nós três.

Cacau deu seu latido estridente de indignação.

– Nós quatro... – ratificou seu pai. – Então, tivemos a idéia de passar um dia juntos.

– Ah... – Bianca não parecia muito animada. Tinha feito planos para aquele dia. Precisava descobrir o lugar certo, o dia certo e o momento certo...

– Não precisa disfarçar sua empolgação! – disse sua mãe, notando que a menina não parecia muito feliz.

– Não é isso! – explicou. – É que eu tinha planejado ler hoje.

– Você lê todo dia! – continuou seu pai, ao volante.

– Pra onde nós vamos? – perguntou ela, percebendo que estava cedo demais para irem ao shopping.

Seu pai a olhou com os olhos negros pelo espelho retrovisor.

– Para o lugar certo.



Havia verde. Muito verde. Bianca morava perto, mas nunca tinha ido até a Floresta da Tijuca. Em dado momento, deixaram o carro e seguiram a pé, com suas cestas de piquenique e bolsas térmicas. Cacau ia na coleira, porque era muito burra e, sem coleira, saía correndo ensandecida para qualquer direção. Claro que Bianca não conseguia parar de pensar no que seu pai dissera no carro. “Para o lugar certo”. O que ele quis dizer com aquilo? Será que ele sabia das mensagens que estava recebendo? Ou faria ele parte das mensagens? E se Analice simplesmente o tivesse inspirado a dizer aquilo para dar uma dica para ela? E como diabos ela conseguiria fazer isso?! Bianca estava muito confusa. Ao chegar num restaurante que fica no caminho da subida, alguém gritou seu nome. Virou-se e viu aquele homem magro e alto acenando escandalosamente para ela.

– Tio Marcos?!! – Bianca não esperava encontrá-lo ali. Na verdade, não esperava encontrar ninguém ali.

– Achei que não viesse! – disse seu pai com um largo sorriso, estendendo-lhe a mão animado.

– O quê? E eu ia lá perder a oportunidade de achar mais um portal?

Sua mãe lhe deu um cutucão. Bianca percebeu, claro.

– Um portal? – perguntou a menina.

– É o nome de um livro que ele gosta e vive procurando...

– Mas se ele já tem, pra que quer mais um? – insistiu Bianca, percebendo as imensas crateras daquela história.

– É pra ler duas vezes! – respondeu Marcos. – Pra fixar melhor a história!

– Ele nunca entende da primeira vez, mesmo... – concluiu seu pai. – E Marcel, não vem?

– Estava viajando, mas disse que assim que voltar, combina algo conosco!

Seguiram estrada acima, com as imensas árvores como testemunhas, conversando sobre amenidades. Bianca seguiu em silêncio, levando Cacau na coleira, prestando atenção e com a pulga atrás da orelha. Seus pais pareciam saber mais sobre outros mundos e portais do que ela. Mas por que nunca disseram nada antes? E como fazê-los falar agora?...

Chegaram a um largo cercado por árvores e plantas e com mesas de pedras. O clima era fresco e as árvores farfalhavam ao vento. Sua mãe forrou a mesa com uma toalha vermelha e colocaram as coisas sobre ela. Ninguém tinha tomado café e a fome já batia à porta. Havia pão, requeijão, mortadela, manteiga, sucos e bolo. Tio Marcos contribuiu com uns bolinhos Ana Maria e alguns biscoitos. Bianca comeu, pois estava faminta desde o fim do ritual que fizera na noite anterior.

Talvez fosse o contato com as coisas reais do dia, talvez fosse o próprio amanhecer, mas o acontecido da noite anterior parecia perder a cada hora sua realidade. As chamas das velas cresceram mesmo ou fora sua imaginação? Um anjo lhe falara ou era só uma voz em sua cabeça? Aquelas informações eram reais ou só um truque do seu subconsciente? Talvez nada daquilo fosse mesmo real. “O problema das coisas invisíveis é que não podemos vê-las”, disse para si mesma. Tinha que se apoiar na fé de que não estava louca e pronto. Era muito para se pedir.

Nesse momento, fez uma escolha. O dia estava lindo e estava com as pessoas que amava. Aquilo era real. Era aquilo que iria viver, então. Entrou na conversa e se divertiu, comeu bolo e brigou pelo último biscoito. Bianca sempre foi sociável, embora do seu jeito por vezes bizarro. Sempre se dera especialmente bem com seus pais e com Tio Marcos. Era um dia perfeito. A única coisa de que sentia falta ali era Analice...

Depois do café, arrumaram tudo e recolheram o lixo, prosseguindo na sua caminhada para o topo. Enquanto seus pais caminhavam lentamente abraçados, ela, Cacau e tio Marcos ficaram para trás, observando-os. Ninguém tocara no assunto do desaparecimento da melhor amiga dela até aquele momento.

– Estão fazendo isso por você, sabia?

Bianca olhou para o seu tio, intrigada.

– Sabem que está triste e preocupada com sua amiga... – continuou ele.

– Ah... – suspirou ela, insatisfeita. – Querem me distrair, então... Como se eu fosse uma criança cujo sorvete caiu no chão.

– Não, não é isso. Querem lembrá-la de que há pessoas que a amam aqui. Você sabe que nós a amamos muito, não?

– Claro que sei! – respondeu Bianca, um tanto irritada, embora não soubesse porquê.

– Pois bem. Às vezes esquecemos. Dias como esse são para nos lembrar. Sua amiga pode não está mais com você. Mas nós estamos.

Caminharam em silêncio por mais algum tempo, até que ararinhas azuis cruzaram os céus, fazendo grande estardalhaço. O lugar era lindo e muito calmo, parecia parte de um outro mundo e ninguém poderia dizer que estavam no centro de uma das mais agitadas cidades do mundo.

– Tio Marcos?...

Ele olhou para ela, sem prever a pergunta que viria.

– Minha mãe e meu pai já estiveram em uma outra dimensão?

Tio Marcos arregalou os olhos e voltou a olhar pra frente.

– Todos nós vivemos, hora ou outra, em outras dimensões! – filosofou.

– Não enrola! – disse a menina. – Estiveram, não estiveram?

Um bando de quatis correu na frente deles, distraindo-os completamente.

– Olha! Uma cachoeira!

Bianca conhecia muito bem esse artifício de seu tio de mudar de assunto. Mas ele não iria escapar. Cedo ou tarde, iria descobrir a verdade.

A cachoeira era belíssima, lembrando um véu de noiva sob o sol. Tiraram muitas fotos nela. Também tiraram fotos dos quatis. Bianca voltou a pensar em sua missão de resgate. Se seus pais estiveram em outro mundo, então era possível que suas pistas estivessem corretas e não fossem simples imaginação. Bom, o anjo dissera que precisava encontrar o lugar certo. Seria aquele? Mas era um lugar enorme! Onde exatamente?


– Olha! – seu tio chamou atenção para uma placa. – O Lago das Fadas!

Bianca correu até lá, sem acreditar. Comprovou com seus próprios olhos. Havia um local chamado Lago das Fadas. Se isso não era um sinal, não sabia o que era. Pediu para irem até lá e foi prontamente atendida. Ninguém esperava que fosse tão longe. Subiram, subiram, subiram mais e Tio Marcos já estava pedindo para deixarem-no para trás e pedirem ajuda, pois ele ia ficar e morrer ali mesmo.

Mas chegaram. Era um lago com árvores dentro dele e rastros de luz atravessando a densa folhagem. Silencioso, possuía um ar bucólico e misterioso. Flores preenchiam o lugar com perfume forte e um leão vertia água pela boca numa fonte antiga.

– Que lugar lindo!... – exclamou sua mãe.

“Este é o lugar”, pensou Bianca, sem a menor dúvida, ao lembrar do panfleto que envolvia a pedra que atravessou sua janela. “Agora, só preciso achar o dia certo e o momento certo”.

Trouxera no bolso as folhas amassadas impressas com a letra da música. Lia e relia tentando achar uma pista, mas parecia apenas uma canção de um apaixonado. Foi quando leu o texto que veio junto com Blue Moon que não tinha lido antes. Depois da letra da canção e de sua tradução, um pequeno texto em um comentário desejava feliz Lua Azul a todos. Lua Azul? Achou que a tradução correta seria Lua Triste.

– O que é Lua Azul? – perguntou, lembrando que seus pais eram devoradores de livros e talvez soubessem.

– Já ouvi isso... Acho que tem a ver com fadas... – disse sua mãe.

– Calma, que eu já descubro isso!

Seu tio pegou seu celular de última geração, do qual tinha muito orgulho e adorava exibir, e entrou na Internet. Em alguns segundos, apareceu com a resposta.

– Lua Azul ou Lua das Fadas é a segunda Lua Cheia de um mês, considerada mágica por abrir portais para os reinos elementais. Diz-se que todo ritual feito nesse dia tem seu efeito multiplicado sete vezes. Nossa! Vou fazer uma simpatia pra ganhar dinheiro!

– E quando um mês tem duas luas cheias? – perguntou Bianca. – Achei que só tinha uma em cada mês.

Tio Marcos mexeu novamente nos botões de sua máquina mágica.

– Ahn... Só acontece de dois em dois anos...

Bianca desanimou. Teria que esperar dois anos para resgatar a amiga?

– Mas, olha só!!! Teremos uma Lua Azul amanhã!!!

– Sério?!

Bianca esticou o pescoço e conferiu a informação.

– Então – disse ela, – “domingo é o dia...”


Estiveram juntos por toda a manhã, até que, depois de chegar ao topo e ver a vista maravilhosa da cidade, voltaram. Deixaram Cacau em casa, almoçaram num shopping e esticaram para um cinema. Bianca não reclamou. No dia seguinte, partiria para um lugar do qual não sabia se ia voltar. Queria curtir o máximo que podia. Aproveitou uma passadinha no mercado para comprar as coisas que o anjo lhe pedira: doces e frutas.

Quando a noite chegou, arrumou suas coisas. O livro de fadas que recebera misteriosamente pelo correio lhe deu a última informação que faltava. O momento certo. Segundo ele, certos momentos do dia são especialmente mágicos, pois os portais para determinados mundos são abertos. Para o mundo dos seres encantados, dois momentos eram particularmente poderosos: o nascer do sol e sua partida, o crepúsculo. Depois de muito pensar, Bianca decidiu que a aurora seria o melhor momento para ela. Assim, arrumou as coisas numa pequena mochila, preparou sua roupa e foi dormir, o coração apertado entre a excitação de uma aventura e o medo de nunca mais voltar pra casa. Sentiu-se sozinha e teve vontade de chorar. O coração tremeu de medo. Pensou em desistir. Então, pensou também que Analice poderia estar sozinha em algum lugar também. Renovou sua coragem e disse para si mesma:

– Eu vou, encontrarei Analice e voltarei, custe o que custar!



Não dormira muito. Na verdade, quando achou que tinha finalmente dormido, o celular a despertou. Eram quatro e meia da manhã. Arrumou-se em silêncio, pegou sua mochila e as coisas na geladeira. Mesmo sendo arriscado, foi até o quarto dos seus pais e os espiou longamente. Eles dormiam abraçados, como poucos casais com tanto tempo de casados ainda faziam. Os cabelos negros dos dois se misturavam belamente.

– Eu volto... – sussurrou.



Cacau a esperava na porta sentada como se lhe fizesse uma cobrança. Ela lhe fez um longo carinho e a abraçou, sussurrando:

– Eu volto!...

E, então, com os olhos cheios de lágrimas e o coração apertado, deixou a casa.

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